**AOS PEDAÇOS TÃO EM BREVE** PINTURA: Graça Fontis/CONTO SURREALISTA: Manoel Ferreira Neto
A espingarda me fora emprestada por seu Quincas
Barreiros, garantindo-me que era boa, não falhava tiro, que, de mim, só depende
a pontaria – sorrira, perguntando: “Meu rapaz, você sabe atirar?” - mas tomasse
cuidado, com armas não se brinca. Estava eu passando uma semana na sua fazenda,
resto de umas férias que a firma me devia, queria ficar longe da cidade, de
cervejas e conversas sem sal e tempero nos bares, após o expediente, ir para
casa, jantar, assistir ao jornal, dormir, para levantar cedo para começar a
trabalhar. Tudo só rotina, eu estava cansado. Havia três dias que havia
chegado. A princípio, tudo era novo e maravilhoso. Nadei no rio, pesquei, andei
a cavalo, levantei cedo para tomar leite tirado no peito da vaca na hora. “Quê
vida linda é a de uma fazenda. A vida em cidade grande não tem o menor
sentido”, pensara inúmeras vezes, divertindo-me. Já estava ficando enfastiado
com as novas rotinas, já estava pensando em voltar para a cidade. Tinha de
encontrar outra coisa a fazer. Resolvi caçar. Para dizer a verdade, eu nunca
havia caçado antes. Vesti uma calça larga de brim cru que comprara, também uma
bota de cano largo. Vestido à categoria para uma caçada. Era uma aventura nova
e primeira para mim, já me sentia antes da hora excitado.
Fui andando pelo campo, passos lentos, compassados,
olhando em todas as direções, sentindo a tranqüilidade e serenidade da
natureza, os calangos nas pedras, algumas cabeças de gado pastando. Em breve,
entrei num pasto raso e segui em direção de um bosque que ficava à soleira de
uma colina. Sentia-me alegre e saltitante, uma aventura dessa pela primeira vez
modifica os sentimentos e emoções dentro. A espingarda pendurada no ombro, em
sentido vertical, o cano para cima, a mão direita segurando na alça, o
pensamento solto voando nas nuvens... Andava de cabeça baixa, prestando atenção
no chão, certo medo de tropeçar e cair, a espingarda disparar tiro.
Menino de cidade, adolescente de cidade, agora
rapaz (vinte e cinco, quase vinte e seis), passando uma semana em casa de amigo
de minha mãe, no interior. Fazenda maravilhosa, gado bonito, na maioria nelore,
zebu de raça. Jamais tinha eu vivido qualquer experiência parecida. E lá numa
fresca tarde me deu na telha sair à caça, apanhar uns jacus e umas perdizes,
coisas que eu só conhecia de nome, por vir fotos em revistas, às vezes nalgum
programa de televisão, por ouvir falar. E lá ia eu por inteiro embevecido no
meu deleite, feliz da vida com a nova experiência, até que penetrei no bosque.
Sentei debaixo de um abacateiro, coloquei a espingarda no chão, com o cano
virado. Qualquer ruído era inusitado, estranho para mim, e mais de uma vez me
preparei para o tiro... sem ver o alvo. Uma pombinha isolada do bando pousou
num galho tão alto que sentia a distância não dava para o alcance da
espingarda. Depois foi um periquito tão lindo que não tive coragem de fazer-lhe
mal. Veio-me na memória, ainda criança, no alpendre de minha casa, vi um pardal
assentar-se na galha de uma jabuticabeira, apanhei uma pedra, atirei, certeira
a pontaria, não matei, o pássaro esperneava no chão, aproximei-me, toquei-lhe
na cabecinha, recuperou-se, deixei-o voar. Tive remorsos. Não mais fiz isso.
Rolinhas e sabiás ou joões-de-barro, encontrei-os aos bandos e o bosque era tão
lindo com eles vivos, pipilando e valsando. Decidi voltar à casa da fazenda.
Mesmo sem matar nada, sem levar nenhum troféu,
voltei alegre e saltitante, o coração pulsava mais acentuadamente, a espingarda
inútil com um cartucho inútil, sem detonar. Saindo do bosque, o pasto raso
estava todo invadido pelo rebanho. Na minha trilha postava-se um touro enorme,
de chifres descaídos como punhais paralelos. Como são misteriosos os olhos do
boi, naquele seu modo estranho de olhar a gente, ao compasso monótono do seu
mastigar o capim fresco. E agora? Sigo em frente ou volto e subo a uma árvore?
Por certo que seria desonroso, vergonhoso, ter que admitir o medo àquele grandalhão
que eu tinha a me olhar pela frente. Já havia escutado falar que diante da fera
não se pode demonstrar temor, que é pior. Se um cão late, ameaça atacar, é
ficar quieto, não ter medo, aí ele não ataca. – Senhor, meu Deus, comecei a
rezar baixinho. Fiquei mais apavorado, porque o boi andou três passadas na
minha direção e porque me lembrei do fogo do inferno aonde eu iria parar aos
pedaços tão em breve. Neste instante, outras reses se aproximaram do touro,
todas olhando na minha direção. Comecei a gelar dos pés para cima; um torpor
frio foi-se apoderando do meu corpo lentamente como se estivesse sendo
mergulhado num poço de gelo. Era atirar na direção das reses, do touro, mas lá
eu lembrava que tinha uma espingarda dependurada no ombro; lembrei-me, mas
pensei que se o fizesse iria instigar a todos a me atacarem. Senti uma ventania
em rodopio a envolver-me como se eu próprio girasse como um pião. No giro que
todo me envolveu, senti-me esticando, engrossando e retorcendo como uma corda,
e fui crescendo e subindo e abrindo os braços como um cruzeiro enorme plantado
no chão.
O que iria fazer? Sair correndo? Podia tropeçar,
cair, a arma disparar um tiro; não sabia correr no campo aberto, não tinha
quaisquer costume em fazer isso, as reses me pegariam. Meu Deus! Olhei para
baixo e eu realmente estava enterrado no chão e senti-me em firmeza, fixado ao
solo por potentes raízes que sugavam a terra com a velocidade de uma sonda de
petróleo, e aquela doce seiva como um sangue milagroso fortalecia meu dorso
agora transformado em tronco, atingia-me os braços transformados em galhos, e
chegava-me aos cabelos, metamorfoseando-os em ramos e folhas e muitas folhas e
ramos.
O sol começava a roçagar o horizonte e projetou a
minha sombra sobre a campina rasa. Foi então que pude enxergar-me por inteiro e
ad-mirar-me da minha beleza e da minha potência; era eu um enorme jacarandá,
altivo mas solitário. A noite se espreguiçava nos montes. De repente, todos os
pássaros que eu havia visto no bosque, e eram não só o periquito, pombinha e os
joões-de-barro, mas muitos outros de espécies variegadas e luxuriosas como
catataus, canários, cabeças-de-fogo, belgas, sabiás, rolinhas, pintassilgos,
vieram em revoadas, aos gritos e ao ruflar de asas, e se abrigaram nos meus
galhos, de forma que eu fiquei coberto deles como se eles fossem meus frutos,
dependurados em mim, formados de minha seiva e de meu sangue. Ao pé de mim,
também se abrigaram as reses e o touro antes tão ameaçadores e agora deitados
sobre mim, a ruminarem de olhos fechados como um sonâmbulo inofensivo.
Pela manhãzinha, vi chegarem seu Quincas Barreiros
e mais dois de seus capangas em atitude de quem por mim procuravam, estavam
preocupados comigo. Saí à tarde do dia anterior, era manhãzinha fresca, o sol
começava a sair, não tinha ainda voltado para casa. Pararam extasiados e
discutiram porque não se lembravam de tal árvore ali, defronte do bosque, bem
no meio do pasto. Que árvore era aquela? Já tinham passado diversas vezes por
aquele lugar, nunca perceberam a existência dela. Não era possível! Um dos
capangas subiu por mim a cima e apanhou a espingarda que seu Quincas Barreiros
me emprestara para ir caçar, e que se encontrava pendurada pela alça num de
meus galhos.
- Seu Quincas Barreiros, a sua espingarda está
aqui!
Seu Quincas Barreiros olhou por todos os lados,
dizendo:
- O que aconteceu com Jorge Lima? O que vou dizer
para a sua família?
- Vamos continuar procurando, deve de ter se
perdido, patrãozinho!
- Vamos continuar procurando... – respondera seu
Quincas Barreiro.
(**RIO DE JANEIRO**, 01 DE ABRIL DE 2017)
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