*A VIDA PASSA, PASSARELANDO* - IN "PARTITURAS DO ESPÍRITO" - 01 DE MARÇO DE 2017** - PINTURA: Graça Fontis/PROSA: Manoel Ferreira Neto


Desejo ir, além do conhecido, do sabido, quero ultrapassar o tempo e a luz, num momento de começo ou de fim, num instante de tudo ou nada, contudo estou estático, sou a vil matéria, sou resíduo, sou vestígio, sou memórias de um tempo de coronéis, jagunços, de assassinatos para que o sangue fosse visto correndo vivo e quente, de princípios radicais e insensíveis, sou inconseqüente em mim mesmo, sou destemido frente às ameaças, pressões, frente aos preconceitos e discriminações sou a lâmina do machado que corta a lenha, não bato de lado, pelas costas, bato de frente, noutras palavras, não como angu quente pelas beiradas, enfio a colher no meio, sopro antes de levá-la à boca, não sou imbecil para queimar a boca e a língua, e quando sopro destilo nos ares da crítica a realidade de todas as hipocrisias conhecidas e inconscientes – “o artista é a origem da obra e a obra é a origem do artista” dissera filósofo alemão, com quem aprendi a separar os sufixos das palavras com hífen, a trans-gredir as normas da separação de sílabas em busca de categorias e pó-esia, de pó-iésis e trans-cendências, o que apreendi e aprendi levo a critério, auxilia-me nos mergulhos profundos de verbos e essências.
Perco-me no ponto que sou: de partida ou de fim, metamorfoseando-me na busca do ser, da auto-explicação. Trilharei apenas as mesmas pegadas, os mesmos rastros que me legaram, que me conduzirão impreterivelmente ao mesmo NADA? Se ad-mito haver vindo do nada e ao nada re-tornarei, esse questionamento a priori já está respondido, mas a máxima diz: “Antes o nada, depois o cosmos”. O cosmos se faz na continuidade das buscas, realizações, encontros e des-encontros, é a realidade da vida, é o real da exis-“t”-encia, nem Deus diz que não devo, não me é permitido, sentir o simples de minha vida.
Todo tempo só em ser-tempo é fim não começo. O tempo engendra a morte, e a morte gera os deuses e, plenos de esperança e medo, oficiamos rituais, inventamos palavras mágicas, criamos idéias esplendorosas, fazemos poemas, ridículos poemas que o vento mistura, confunde e dispersa no ar... O tempo é uma invenção da morte: não o conhece a vida – a verdadeira – em que basta um instante de versos e estrofes para nos dar a eternidade inteira, a infinitude plena, a efemeridade do re-nascer cheio de outras ilusões e verdades. Inteira, sim, porque essa vida eterna somente por si mesma é dividida, dividida entre as contingências e os ideais.
Evidência de alegria final nos limites da condição, nitidez de posturas e gestos que re-nascem das cinzas das utopias de consciência e sabedoria. O nada inimaginável, a impensável destruição do absoluto que sei, do efêmero que desconheço, quem sabe conheça, não o saiba, simplesmente re-presente o fogo, as chamas do verbo “ser” nas imanências dos desejos, de minhas mãos que se elevam aos céus de todas as paisagens e panoramas curvelanas, rogando a plen-itude e subl-imidade do eterno “enquanto dure”, tendo mais bem sido, se o conhecer viesse primeiro que o saber de estrelas e paisagens que fecundam o espírito de outros amanhãs e outras noites, de outras madrugadas e alvoreceres, que inundam a alma de outras querências, de águas iluminadas pelos raios do sol que nelas incidem, enquanto seguem o seu itinerário, abrindo espaços e caminhos, de outros arrebiques do belo em barrocas tardes de chuva fininha ou de sol incandescente, de outros confins e arribas a abrirem plen-amente as nuvens brancas dos desejos, azuis das esperanças, amarelas das utopias, verdes da fé, o que não é in-diferente e se me impõe como a única verdade que de mim irrompe, o que me afirma uma totalidade de ser, o que me coloca numa posição bem confortável de in-finitude e im-ortalidade, o que me define e é a própria realidade de ser sendo, estar-sendo, penso eu, é consciência de meus caminhos do campo e é busca de outros versos do sim e do não.
Os olhos sentem os instantes de tristeza: servem-lhe de modo profundo na atitude de vislumbramento e entre-visão. O sensual greta-se com o suave como para dar melhor acolhida à nobreza dos sentimentos. Na esteira da face, chega o tempo em que uma deliciosa quantidade de pitoresco afirma uma dis-fonia de re-toques ou uma fonia de dis-res de toques. Encontro o sentido do amor e da amizade. Nenhuma forma de vida detém a totalidade mais tempo do que lhe é necessária para se dizer. Numa re-fração de ouro claro, surge o momento em que palpitam as asas de uma águia re-colhendo a sin-fonia de águas re-vestidas de silêncio.
A face dos ventos arrasta e dispersa as nuvens, e faz sair um brilho nos olhos, que experimenta a vereda, que evoca com as asas ensopadas, com o rosto terrível coberto de uma barba pesada como a chuva, a água escorre de meus cabelos brancos, a névoa me cobre a fronte, desprendem umidade minhas asas e meu peito. Apresenta-se-me a olhos nus. Como o sensível vai ao encontro da intimidade do outro, como a intuição exterioriza-se no outro, como o emotivo penetra no outro. Tenho a sensação, muitas vezes, de estar a andar pela periferia curvelana, Alto do Tote, Passaginha, Vila de Lourdes, a tal ponto o ar luminoso e quente me cobre e lentamente me ergue, ergue-me aos hinos de esperança e fé no tempo de nosso ser será pedra angular de utopias cristãs. Mostrar-me a todos, inteirar-lhes de minha individualidade, manifestar-me inteiro, reconhecer as virtudes e valores. Perco-me numa des-organizada perseguição a coisas fugidias, a coisas etéreas, a coisas esfumaçadas.
Quero marcar ponto na ec-sistência, quero pontuar a alma dos pastos de meu regresso passado, quero marcar boitempo, quero as-{s}-inalar e sublimar o tempo-boi, acontecendo no acontecer que me criva de balas e me retalha a sabres. O boi-tempo me dá uma lição de coisas: tenho alguma poesia e o sentimento do mundo, tenho versos e a visão da vida, tenho palavras e ausência de vocábulos. O tempo-boi me deixa vazio: tenho de criar palavras para na forma, estilo e linguagem colocar versos na prosa, comungar sentimentos e idéias em busca das verdades que me habitam a alma, reunir sonhos e in-verdades em busca de in-finitas inspirações que residem em minha sensibilidade, a jornada é longa e sem fim, a caminhada é sem princípios, meios e términos. A vida passa e o vento ainda me leva para bem longe, para o in-finito... in-finito do nada, nada de ser tudo, tudo en-si-{mesmado}, re-verse a mesm-idade desta imagem, in-verse a nonsens-idade destas pers-pectivas do tudo escuro, as voltas pelo balanço incansável de corrigir, re-levar as batidas que cada palavra sussurra, que cada sentido e viagem nas asas do transcendente murmura e mostra nítido e límpido. Viagem longa, curta filmagem de ver um instante, um começo fantasiado.
Há uma hora no céu, não sei dizer, sinto-me feliz por assim sentir e pensar, se quando amanhece, se quando entardece, em que até Deus fica triste, quer vir para Curvelo, quer passear pelas ruas e avenidas, quer curtir as belezas do início do sertão, fazendas e gados, passear tranqüilo e sereno pelas alamedas, becos e ruas arborizadas, sentar-se na escadaria da Praça da Cultura, con-templar o maravilhoso Pôr do Sol, com os velhinhos aposentados na Praça Benedito Valadares, trocar dedos de prosa com os boêmios, com as donzelas des-pertadas para a busca do amor e do carinho em abraços e beijos no Nice´s 2, “good old times” de minha juventude em companhia de amigo íntimo e espiritual, quando ficávamos até a plena madrugada, o garçom fechava as portas, continuávamos dentro, falando de literatura e filosofia, discutindo idéias, pro-jetando o futuro de nossas vidas como artistas, com os homens que têm rumos e destinos a serem cumpridos e realizados, mas o mundo é grande e pequeno, pronunciar novas Palavras, acrescentando-as no Sermão da Montanha, o misticismo curvelano irá assimilá-las com facilidade, serão verdades e projetos de evangel-idades, conversas in-formais por todos os cantos e recantos da cidade.
Desejo pactuar comigo de acaso em acaso, sem caso formal de ideologias que nem são minhas, sem fato informal de interesses de que nem sou o artífice – não chamo o que necessito para despertar o ser em mim de interesse, chamo de querência. Quero libertar meus mitos, meus ritos, minhas lendas do encontro e do des-encontro, fracasso e frustrações, desilusões e ressentimentos, meu grito de toda repressão de formas que destroem a forma na busca secular do meu ponto-comum-limite, que aniquilam a “libertas” do “quae será tamem”, quero ser curvelano de ser e não-ser, quero ser mineiro de sonhos e utopias cristãs, pagãs na imanência e contingência de todas as correntes e algemas, trabucos e chibatas, do tempo na sua roda-viva de sim e não, quê esplendida rede de nada e tudo, efêmero e nadig-encial, quê maravilhosa teia de fios e arte de tecê-los! A idéia de meu pensamento, angustiada, que se enclausurou no fundo de meu ser, indizível, incomunicável, inaudito, por mais que quisesse ser expressa, ser dita, por mais que a quisessem expressar, dizer torna-se-me sensível, por vezes inseguro, pois que me fogem as perspicácias da concepção, criação de palavras que a id-ent-ifique.
A vida passa, passarelando...


(**RIO DE JANEIRO**, 10 DE MARÇO DE 2017)


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