**SARAPALHA DE VEREDAS E MEMÓRIAS** - Manoel Ferreira
Se ontem, nos pretéritos da memória, mergulhei fundo na fonte de águas
cristalinas, na lareira de chamas ardentes, sentindo o momento da re-velação
delas, aquele desejo de saciar a sede do inaudito da vida, o êxtase da
humanidade do ser, agora desfruto a alegria indizível da madrugada fria, de
chuva, sentindo-me mais forte, é preciso sonho para cumprir a vida, é preciso
esperança para a sabedoria de ser.
Se ontem não fui capaz de compreender porque sou homem de letras, se me
perscrutando vi o corpo de carne e ossos, isso teria fim, seria cinza, agora
vejo com transparência o que amigo disse com isto: trago em mim dentro o
vir-a-ser de esperanças do sabiá cantando, o gado berrando nos campos áridos,
íngremes do sertão... sertão de utopias, sertão de travessias.
Se ontem, num botequim de esquina, na hora de pagar a conta, perguntei
ao proprietário como ficava o troco que me dera se considerasse os "noves
fora zero", em resposta dizendo ser eu cheio de gracinhas, falando eu ser
artista, tendo de carregar as gracinhas na minha mochila, agora só sei que o
zero do fora é viver de nada absolutizando o vazio, o fora do zero é sobreviver
de instantes efêmeros e momentos fugazes, e na cripta inscrito com letras
garrafais: "Os nove fora de minha vida foram o vazio das esperanças".
Se ontem a sombra projetada na amurada me fora luz para iluminar os
ideais de um vir-a-ser de espectros refulgentes, quero agora cometer o pecado
da carne, sentir prazer do gozo, esquecer-me dos idéias da alma.
Se ontem a lâmpada de meu quarto de dormir queimou, dormi no escuro,
sonhei com uma caverna de diamantes brilhantes, sentei-me à soleira de entrada,
após sair sem única pedrinha no bolso, numa rocha, pondo-me a con-templar o
arco-íris que riscava o céu de infinito a infinito, desejo agora estar
simplesmente jantando uma canja de frango, tomando um aperitivo, ouvindo uma
criança chorar na casa vizinha.
Se ontem me senti amado e querido, quando minha namorada beijou-me a
pontinha do nariz, virando-se para o seu cantinho, dormindo, agora a vontade é
de pintar uma tela de janela aberta para o campo, dois pássaros brancos
pousados num galho seco de árvore, e durante a arte de pintar sentir no âmago
de mim o pretérito de estar sempre caminhando em direção ao pleno, o vir-a-ser
de estar humanizando os sentimentos de amor e do belo.
Se ontem, enquanto afiando uma faca na outra, para cortar uma picanha
assada em pedacinhos finos, lembrava-me de uma professora que me mandou sair da
sala de aula por estar sujo de sangue, trabalhei o dia inteiro no Açougue
Esperança, não tive tempo de me banhar, trocar as vestes, e sonhava ser um
homem de grande conhecimento, agora estou sentindo a felicidade de com a faca
da arte destrinçar os mistérios da vida de ideais.
Se ontem ri de minhas picuinhas, acompanhadas de achaques e pitis, ao
passo que pretendia verter lágrimas contundentes, hoje estou tomando banho e
cantando: "Josefina foi ali/Foi catar capim/Para seu Joaquim".
Se ontem cri piamente na escuridão qualquer capeta é Deus, hoje afianço
que no crepúsculo qualquer deus é o capeta às avessas, isto porque abri a
janela sentindo no peito uma sensação de indiferença a tudo neste mundo.
Manoel Ferreira Neto.
(07 de março de 2016
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