*NÁUSEA DO VAZIO/VAZIO DA NÁUSEA - XXX PARTE** - Manoel Ferreira
E outra vez sinto dentro de mim um poder excessivo, como se me visse
subitamente rico e não soubesse o que fazer da riqueza.
A estrada que tantas vezes pisara na forma, amarrado à regra, corre
agora aqui sob os meus pés libertos, diferente, com um certo ar íntimo de quem
me esperasse em silêncio há muito tempo.
Olho as árvores e sinto descer delas um olhar vivo e fraterno. Paro junto
de uma, corro, devagar, os meus olhos pela sua casca rugosa, e é emocionado que
a sinto do meu destino, irmanada às árvores da minha terra distante. Lentamente
a manhã vai-se abrindo em leque por todo o horizonte, debruça-se, suspensa da
altura do céu. Um grande arco de triunfo levanta-se de pólo a pólo e eu passo
por baixo dele, silencioso, mas investido de uma glória antiga, como se
passasse por um solitário arco de ruínas...
À noite, quando cheguei a casa, após ter saído para os afazeres
quotidianos, mercearia, banco, açougue... Ah, sim, isto merece ser dito.
Berenice incumbiu-me sistematicamente do açougue. Estava cansada de os
açougueiros passá-la para trás, pedia uma qualidade de carne, serviam outra, e,
além do mais, não gostavam de tirar as "mochibas". Açougueiros não me
passam para trás, e eu exijo categoricamente que a carne seja limpinha. Não
precisam tirar bifes, tiro-lhes eu. A carne fica toda por minha conta
exclusiva. Tiro os bifes, tempero, frito; se se trata de carne assada, sou quem
tempera também.
Chegara a casa, encontrando Berenice nervosíssima, gritava a plenos
pulmões palavrões. Até me assustei porque não é disso: de palavrões.
- Benzinho, o que está acontecendo? - olhei no chão, livros, papéis. -
Passou um furacão por aqui?
- Tinha escrito uma coisinha para você, amor...
- Sim... e daí?
- Daí que perdi o escrito.
- Perdeu como?
- Escrevi no computador... Não sei o que aconteceu... Antes de salvar, o
texto desapareceu da telinha. Foi isso.
- Você mexeu nalguma coisa do teclado, ocasionando a perda.
- Não sei. Estava muito feliz. Falava sobre o meu amor por você.
- Jogar tudo no chão, gritar, esbravejar, ruminar palavrões à revelia
não vai resolver a perda do texto. Já me aconteceu isto muitas vezes. Perdi
textos importantíssimos. Fazer o quê?
- Fazer o quê? Amor, sabia que não se escreve outro.
- Não se escreve o mesmo, mas se escreve outro. E, por vezes, fica até
melhor que o perdido.
- Está bem... - abraçou-me, beijou-me o pescoço, deitou a cabeça no meu
ombro - Meu amorzinho, era muito importante o que escrevi, O meu amor por você
todinho escrito.
- Benzinho, deixe estar... Ainda está nervosa. Quando se tranquilizar,
escreva outro.
- Vou tentar...
- Não vai à faculdade, Berenice?
- Não vou hoje. Não são aulas importantes. Quero ficar com você.
E fomos comer uma pizza no restaurante Tarantella. Sentiu inspiração.
Pediu à garçonete uma folha de papel. Deixei-a escrever à vontade.
Manoel Ferreira Neto.
(07 de abril de 2016)
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