AVE-MARIA!... SILÊNCIO ÍNTIMO DO - AMOR Manoel Ferreira e Ana Júlia Machado.
Desejo da verdade, redenção. O íntimo possa iluminar-me. Intuição de que
há muito a ser revelado, de que há demais a sentir e con-templar. Símbolo e
representação do sonho da harmonia entre a Vida, as palavras, entre a vontade
do sublime e graça, cheia de sonhos e necessidade de paz.
Ah, esta vocação do sublime tomou-me por inteiro! Lembrou-me haver
sentido frio e vento perpassarem-me a coluna vertebral. Os olhos senti-os
faiscarem. Creio que desejei fossem habitar o que percebera e intuíra
verdadeiro, pleno de compaixão e misericórdia.
Bato à porta. Abre-se. Entro e sento-me. Luz oblíqua, indireta,
fragmenta-se nos cálices de champagne sobre a mesa, em estilhaços de vidro que
brilham imenso. A um canto bebo num cálice delicado, esforço-me por alinhar as
mãos finas com... O cálice tinha um pé fino como estilete.
Sem o desejar, sou quem quebra limites, esperanças, os vários
ancoradouros que, com esmerada paciência, tinha estabelecido no decorrer da
infância, através das orações, histórias recontadas da Bíblia. Não creio seja
inútil preparar-me para a morte, como se pudesse acontecer agora à busca da
pequena choupana de paredes azuis, criada no espírito, símbolo da
espiritualidade que deseja re-novar-se. Mesmo que a vida se prolongue por anos,
não creio esteja maduro para enfrentar a travessia serena da passagem. Isto
acontece com os seres que despertaram para a Vossa Graça, Misericórdia.
Que me falais? Dizeis-me? Tudo tem de ser criado. Sou triste, tenho dó
enorme de mim. É dó tortuoso, cheio de truques, ciladas, tripúdios. Parte de
mim para Vós, para os Vossos olhos sem sono, fundo; dá a volta através deles
por todo o passado vazio, regressando a mim.
Medito, Senhora, sobre o processo da morte de modo a aprofundar o
conhecimento do espírito. Sim, devo bem refletir sobre a velhice, morte, pois
serão elas a mostrar-me o significado. Tornar-me-ei forte, determinado a mudar
o bendito fruto do ventre.
Renascer é inevitável. Único estado a permitir realizar o despertar de
pecados, culpas, remorsos. O raio almíscar, gelatinoso de nada, esvoaçante nas
dobras de cortina adocicada: alçar vôo no tudo, nada, imensidão de brisa
serena. Bailarina passando no fundo dilacerante de asas e sussurros, de leve
brisa de silêncio. Gemido na noite plena.
Mas é com vocábulos, que eternamente induzirei metamorfosear a
interpretação de Universo, e instalarei a todos a autêntica significação de
querença, não obstante, sim bem-querer seres, e mais seres para poder findar
com essa erradamente questão que ainda subsiste.
O que desabrocha, floresce e dá frutos, sorrindo ao Sol, universo, é a
semente que se tornou árvore. Pode triunfar porque o húmus, fecundo, lhe deu os
nutrientes. Triunfa a águia por abrir caminho para frente.
Algo é mexido em profundidade, como se mão entrasse em mim, movendo
sentimentos que preferia nas gavetas. O olhar compadecido diante da janela,
cujo vidro não reflete imagens; alguém de pé, empurrando com a esquerda a
cortina. Assim parado, querendo não estar. Em silêncio, desejando ouvir
vozes... Com todas as lâmpadas da casa acesas e ainda faltando luz. É madrugada
- a porta de meu casebre está aberta, são quase cinco horas da manhã. Não corro
riscos. A janela também está aberta. Quero sentir o friozinho.
O tempo é de salvação. De não estar sozinho. De sentir o Vosso
aconchego. De escutar Vossa voz, capaz de deter o mal, interromper os processos
de destruição da vida. A vida, festa; nela os convidados estão felizes e riem
do prazer que sentem - não é para chorar, é para ser feliz, sentir a vocação da
felicidade. Haverá alguém quem estende a mão, voz que responderá com carinho,
socorrendo nas solidões e carências.
Após muitos anos,
Acho a razão,
E entendo que instantes de alegria foram gastos,
Por um intelecto que afiançava uma incerta justeza.
Um dia des-cubro que a inteligência
Cotovelou meus pressentimentos e extraiu sua causa,
Submergiu minhas emoções numa imensidão designada quimera.
Um dia a tormenta transpõe,
E capacito que tudo na existência tem sua importância.
Mesmo todos os percalços que se cruzam com os homens
Mesmo que aparentem ser nonadas
Mas que possuem um fundamento
E melhor do que ninguém descubro que o apreço da felícia é erudição do
que é viver,
É próprio do espírito sentir e experimentar dentro de si, como
ressonância, todos os seres e o Ser. Lamento nada poder dizer-Vos, Senhora,
rejubilante, porque o amor que age, comparado com o contemplativo, é algo de
cruel e atemorizante. O amor contemplativo tem sede de realização imediata,
atenção geral. Chega-se a ponto de dar a vida, com a condição de que não dure
muito tempo, tudo acabe rapidamente, como no picadeiro, sob os olhares e
elogios. O amor atuante é o trabalho e o domínio de si, e para alguns, toda uma
ciência.
Até mesmo o deserto adquire sentido? Sobrecarregá-lo de musicalidade,
ternura. É lugar consagrado por todas as dores do mundo. Mas o que o coração
reclama, ao invés disso, são lugares destituídos de poesia.
Sou chamado a participar da vida, muito além dos desencantos,
desencontros; levá-la a beber da água da graça. Alimentá-la do seio da paz e
não permitir dores a coloquem em dúvida. Tendo sido confiada a nós pelo Senhor,
ela bem que requer esmero. O ensejo que deve vestir a vida não pode se esquecer
de que, embora tantas marcas de espinhos, a tiara deverá ter as belas flores do
campo.
Se não erguesse os dedos, fizesse um gesto, estrangularia a verdade.
Diria: “O jarro quebrado, quadro desbotado, pobre trinco...” Possível fosse
nota de violão, constituindo qualquer som, não música para mostrar o barulho
final destas palavras. Creio que seria capaz de revelar o como as coisas
tremelam.
Flor de desejos e rosas de sonhos... A casa, pouco recuada, de frente
para a rua. A pintura azul está queimada de sol, e a parede, em conseqüência da
chuva e do sol, bem estragada. Há lugares escavoucados. Entre a grade e casa,
jardim, grama. Quase todas as espécies de rosas estão ali plantadas.
A vida acontece no quarto. Desenho céus tristes nas paredes frias. E lá
fora, inda que seja verão, juro ouvir chuva. O inverno parece nunca ir embora.
Falta-me estrela a levar-me ao coração da vida, onde abraço os dias, em
adoração e inocência, além das paredes e das vozes que me querem prisioneiro.
Jogo ao chão as letras, as rudes muralhas. Apontam-me o verdadeiro céu. Seguro
a mão e com elas caminho pelo jardim. Sempre, além da aparente chuva,
aguarda-me o sol... As flores vestiram as melhores cores. Os soldados pararam
de atirar. O vento esqueceu as folhas. Ouço o ritmar de passos usando
sandálias. O mundo silencioso indaga-se sobre o que me falariam os homens, o
que de Vós ouviria...
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